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Anões sobre ombros de gigantes
Rafael Mendes
A célebre metáfora dos anões sobre os ombros de gigantes (nani gigantum humeris insidentes, em latim) encapsula com rara profundidade a ideia de que alcançamos a verdade erigindo-nos sobre os feitos e descobertas daqueles que nos antecederam. Este conceito, datado do século XII e atribuído inicialmente a Bernardo de Chartres, tornou-se imortalizado pelas palavras de Isaac Newton em 1675, conferindo-lhe um caráter quase universal. Mais do que uma alegoria da continuidade do saber, esta imagem resplandece como um tributo à humildade intelectual e à interdependência que permeia o avanço humano. Ela nos ensina que todo progresso não é um feito isolado, mas o resultado de uma colaboração silenciosa ao longo das eras. Ao reconhecer que vemos mais longe não por méritos exclusivamente nossos, mas graças ao legado monumental daqueles que vieram antes, celebramos o conhecimento como um patrimônio coletivo e como o alicerce sobre o qual repousa a grandeza da humanidade.
O historiador Jacques Le Goff, em sua magistral análise sobre os intelectuais medievais, evoca com elegância a metáfora dos anões sobre os ombros de gigantes para descrever a relação dos sábios daquela época com o conhecimento: “Somos anões carregados nos ombros de gigantes. Assim vemos mais, e vemos mais longe do que eles, não porque nossa visão seja mais aguda ou nossa estatura mais elevada, mas porque eles nos carregam no alto e nos levantam acima de sua altura gigantesca [1].” Essa reflexão, central à concepção medieval do saber, remete diretamente às origens das universidades ocidentais, surgidas nos séculos XII e XIII em meio ao renascimento urbano, fortemente conectadas ao florescimento da escolástica e à síntese das tradições clássicas e árabes.
O mestre Bernard, destacado professor da renomada Escola de Chartres — o principal foco de investigação científica no século XII —, articulava essa nova visão do conhecimento como um esforço eminentemente coletivo, uma construção que, ao se apoiar firmemente sobre o legado dos antigos, visava transcender os horizontes previamente estabelecidos. Assim, a ciência e o saber não eram percebidos como coleções de verdades estáticas ou fragmentadas, mas como organismos dinâmicos e em contínua evolução, nutridos pela confluência de perspectivas passadas e presentes. Nesse modelo, o avanço do pensamento humano resulta de um diálogo constante entre tradição e inovação, reforçando a ideia de que cada geração carrega o compromisso de preservar, reinterpretar e expandir os alicerces deixados por seus predecessores.
Umberto Eco, em sua perspicaz reflexão acerca da metáfora dos anões sobre os ombros de gigantes, amplia sua interpretação para abarcar a essência dialógica do conhecimento humano, caracterizada por um constante intercâmbio entre tradição e inovação. Para Eco, estar nos ombros dos gigantes significa mais do que simplesmente reconhecer o que nos foi legado; trata-se de compreender essa herança como uma base sólida e indispensável, construída ao longo da história, que nos capacita a enxergar mais longe. No entanto, ele enfatiza que essa posição privilegiada não deve conduzir à estagnação ou à veneração cega do passado. Pelo contrário, o verdadeiro valor do conhecimento reside na capacidade de transformar o legado recebido, questionando-o e renovando-o à luz das necessidades e desafios do presente.
Eco sugere que o conhecimento humano não é uma estrutura estática, mas um organismo vivo, em que a herança intelectual atua como ponto de partida para novas criações. Nessa perspectiva, a força do saber reside em sua maleabilidade e no poder de adaptação às complexidades de cada época, permitindo que o progresso se manifeste não pela ruptura com o passado, mas por sua transcendência. Assim, a metáfora dos gigantes e dos anões ganha uma nova dimensão: simboliza a continuidade criativa, na qual o respeito ao que foi construído se combina com a coragem de inovar. Essa dinâmica reflete a essência do progresso intelectual, no qual cada geração é chamada a reinterpretar, transformar e expandir as fundações que sustentam o edifício do saber humano.
No imenso oceano do conhecimento em que navegamos hoje, a metáfora dos anões sobre os ombros de gigantes reverbera com especial intensidade. Ela encapsula uma humildade reverente diante dos grandes pensadores do passado, aqueles que, com seu gênio e esforço, lançaram as fundações sobre as quais erguemos nossa civilização. Mas, imersa nessa imagem, há uma nuance transformadora: ao subir nos ombros desses gigantes, conquistamos a perspectiva de enxergar mais longe do que eles jamais puderam, expandindo os limites do que era, até então, imaginável.
É precisamente essa capacidade de ultrapassar os horizontes de nossos predecessores que define o verdadeiro progresso. Longe de ser um ato de ingratidão, essa superação é, na verdade, um tributo ao legado que nos foi confiado. O saber, nessa visão, não é um monumento estático, mas um fluxo contínuo e renovador que nos convida a desafiar, reinterpretar e transcender. É esta dialética que move o avanço humano: honrar profundamente o que nos precede, enquanto ousamos traçar novos caminhos e projetar horizontes ainda mais vastos. Tal dinâmica simboliza o equilíbrio essencial entre memória e inovação, entre respeito pela tradição e coragem para desbravar o desconhecido.
Essa metáfora destaca um dos principais dilemas da epistemologia moderna: como conciliar o respeito pela tradição com o ímpeto de inovação? Subir nos ombros dos gigantes implica uma apropriação do passado que não é estática, mas dialética; cada geração assimila, reformula e finalmente transcende o conhecimento anterior. De um ponto de vista histórico-filosófico, essa dinâmica sustenta o desenvolvimento das ciências e das artes, que, ao longo dos séculos, evoluíram ao mesmo tempo que mantiveram uma continuidade com o legado de seus precursores. Por vezes, porém, esse processo implica um verdadeiro corte epistemológico, um momento de ruptura radical em que novas compreensões se impõem, transformando a percepção de um campo do saber. Tal corte não é uma negação das bases estabelecidas, mas uma reinterpretação ousada que permite saltos qualitativos na compreensão da realidade. É por meio dessa tensão que o progresso científico e intelectual se alimenta, renovando continuamente o tecido da compreensão humana.
Tal processo dialético é também um alicerce do pensamento jurídico brasileiro, como revela a história de sua construção teórica. No contexto nacional, a trajetória do Direito foi marcada por transformações profundas ao longo dos séculos XIX e XX, refletindo influências do jusnaturalismo e do formalismo jurídico oitocentista. Posteriormente, incorporou correntes sociológicas, realistas e pluralistas no século XX. Em São Paulo, por exemplo, a tradição jurídica evoluiu com figuras notáveis, como Brasílio Machado, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que contribuíram para um debate vigoroso sobre as bases e os rumos do pensamento jurídico no País. Essa produção intelectual, muito influenciada pela herança europeia, passou a ser reinterpretada no contexto nacional, criando uma identidade jurídica que, ao mesmo tempo, honra suas raízes e se adapta às complexidades brasileiras. O direito, assim, torna-se um exemplo claro de como a interação entre legado e inovação forja uma base sólida capaz de responder aos desafios contemporâneos.
No turbilhão de inovações que molda nosso tempo, essa ideia é particularmente relevante. A inteligência artificial, por exemplo, que transforma indústrias e redefine o quotidiano, é fruto de décadas de esforços que remontam a mentes brilhantes, como Alan Turing e John von Neumann. Turing, com sua teoria da computabilidade, e von Neumann, com a arquitetura que leva seu nome, forneceram as fundações lógicas e tecnológicas para os sistemas que utilizamos hoje. No entanto, o que é atualmente possível — máquinas que aprendem, que reconhecem padrões, que tomam decisões complexas — ultrapassa os mais ousados sonhos desses pioneiros. Somos anões, sim, mas anões que podem explorar horizontes que os gigantes teriam dificuldade de imaginar. Esse processo reflete o caráter cumulativo do conhecimento, a partir do qual cada geração adota o progresso anterior como ponto de partida, conduzindo-nos ao que Thomas Kuhn descreve como “paradigmas” em constante evolução. Essa continuidade entre gerações não é linear, mas um movimento pulsante que carrega em si tanto o respeito pela trajetória como a necessidade de transcendê-la.
Essa dinâmica se repete também nas artes, onde a apropriação e a transformação dos estilos artísticos geraram movimentos revolucionários. Monet e Renoir, ao pintar suas telas impressionistas, não apenas seguiram os passos dos mestres do realismo; eles subiram nos ombros desses gigantes e vislumbraram novas paisagens, estabelecendo um novo paradigma estético que rompeu com os cânones clássicos. Essa ruptura, longe de ser uma simples negação do passado, construiu-se sobre ele e inaugurou uma estética que mudou para sempre a forma como o mundo é visto e representado. Assim, cada nova geração de artistas e criadores carrega o passado em seus ombros, mas não se limita a ele — vai além, criando algo novo e inexplorado. Esse processo, conforme demonstrado por filósofos como Walter Benjamin, ilustra como a história da arte é, de fato, uma continuidade descontínua, onde cada inovação estética redefine a narrativa cultural e simbólica da humanidade. A arte, então, é um testemunho da complexa relação entre tradição e reinvenção, e sua força reside justamente em sua capacidade de reinterpretar o conhecido para encontrar novas expressões do humano.
Precisamos apontar, contudo, que, na era da informação instantânea, há o risco de perdermos essa conexão com as raízes que sustentam nosso crescimento. Vivemos em uma sociedade que, em sua busca incessante por novidades, corre o risco de esquecer o terreno sólido sobre o qual está assentada. A pressa em avançar pode nos fazer ignorar que as lições do passado são os mapas que nos guiam em mares desconhecidos. Como anões nos ombros de gigantes, nossa visão só é ampliada quando reconhecemos a grandeza dos que vieram antes — e então, com essa base, ousamos ver ainda mais longe. Aqui, a crítica de Ortega y Gasset ao que ele chamava de “homem-massa” torna-se pertinente: na ausência de uma consciência histórica, a inovação torna-se vazia, um exercício de novidade sem fundamento sólido. A era moderna precisa, mais do que nunca, de um equilíbrio entre a velocidade do progresso e a profundidade do entendimento histórico.
A ambiguidade presente na metáfora de Bernardo de Chartres é o que a torna tão fascinante. Por um lado, ela nos lembra de ser humildes diante dos feitos daqueles que nos precederam, reconhecendo que as fundações de nosso conhecimento foram construídas por mãos que, embora distantes no tempo, são próximas em impacto. Por outro lado, ela nos incita a ser audaciosos, a usar essa vantagem para ir além, para inovar, para explorar territórios que os gigantes não puderam alcançar. Nossa era, mais do que qualquer outra, é definida por essa tensão entre reverência e revolução, entre o respeito pelo passado e o ímpeto de superar seus limites. Este equilíbrio, como discutido por Habermas, entre tradição e inovação, estrutura o que ele denominou de “esfera pública”, na qual o diálogo intergeracional torna-se indispensável para a construção de uma sociedade verdadeiramente crítica e progressista. É nessa fusão de passado e futuro que encontramos a essência de nossa capacidade de evoluir com propósito e visão.
Cada inovação, cada ideia revolucionária é como um passo ousado dado de uma plataforma sólida construída ao longo dos séculos. Somos herdeiros de um imenso legado, e é precisamente por isso que podemos ser audaciosos. Não começamos do zero; cada avanço que fazemos é impulsionado pelos que vieram antes. Essa consciência nos dá poder — o poder de ver mais longe, de sonhar mais alto, de criar o que antes era inimaginável. A natureza desse progresso foi bem descrita por Isaac Newton, que, ao reconhecer os ombros dos gigantes sobre os quais se apoiava, sintetizou a essência do desenvolvimento científico, um movimento que, paradoxalmente, avança ao mesmo tempo que presta homenagem ao passado. A interação entre olhar para trás e projetar-se para a frente define nossa jornada, tornando cada passo um elo entre o que foi e o que pode ser.
A grandeza de nosso tempo não reside simplesmente na tecnologia que dominamos ou na arte que criamos, mas em nossa capacidade de reconhecer que, embora sejamos anões, a vista daqui de cima é espetacular. E é essa vista que nos convida a ir além, a explorar os confins do possível, a transformar o mundo com o conhecimento que herdamos e com a visão que só nós, do alto dos ombros dos gigantes, podemos alcançar. A dialética entre permanência e transformação define o horizonte da humanidade, pois, ao honrar o legado de nossos predecessores, não apenas preservamos a herança cultural, mas também ampliamos seus limites. Assim, tornamo-nos parte de um ciclo contínuo de aprendizado e reinvenção, que sustenta e propulsiona o espírito humano.
Sejamos ousados e humildes ao mesmo tempo. E, acima de tudo, sejamos os anões que, vendo mais longe do que qualquer gigante, podem mudar o curso da história. Aqui reside o verdadeiro poder: na visão clara do que podemos alcançar quando nos equilibramos nos ombros daqueles que pavimentaram o caminho. É essa dualidade — respeito e ousadia — que nos convida a transformar o conhecimento herdado em uma força que projeta a humanidade para o futuro.
[1] LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2003. p. 36.